7 de novembro de 2022

Fermentação: Vilã ou Aliada?

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Umas das técnicas mais antigas para conservação ou que alteram a qualidade dos alimentos de que se tem conhecimento é a fermentação. Alguns historiadores atribuem que o ser humano teve o desenvolvimento baseado nessa técnica, sendo considerada a maior descoberta dos povos antigos.

Nos dias atuais, todos encontram um produto que seja produzido por meio de processos fermentativos, como por exemplo, cervejas, vinhos, pães e queijos. Entre as bebidas, o vinho tem destaque, e é por meio do conhecimento desenvolvido com essa bebida que muito se constrói ou se busca trazer para o mundo da cafeicultura.

Hoje são conhecidos os avanços que a fermentação trouxe para a humanidade, porém, o aspecto de vilão perdurou por muito tempo, pela ideia de que alimentos estragados eram oriundos dos processos fermentativos.

Um caso muito conhecido é o da fábula da princesa, sendo a responsável pela “criação” do vinho, a qual conta que depois de perder a admiração do rei, tentou tirar a vida com uma garrafa de suco de uva estragada. Além de não funcionar, a princesa percebeu que, em vez de morrer, o seu humor melhorou.

Do mesmo modo, no café, a fermentação sempre esteve mais associada a processos degradativos que ocorrem nos frutos, tanto na planta, quanto no pós-colheita.

Com a presença de microrganismos que estragam os frutos, substâncias que são importantes para a qualidade, como o açúcar, são consumidos. Esse processo faz com que a rota fermentativa seja direcionada para produtos não desejados ou simplesmente que cause uma fermentação ruim.

A fermentação ruim acaba levando o café a ter a bebida classificada como rio, riado ou riozona. Esses tipos de bebida dão sabores nos cafés como ásperos, iodofórmio e medicinal, que geralmente são amargos e repulsivos. Além da depreciação na qualidade da bebida, o café também é prejudicado na classificação física, uma vez que grãos ardidos e pretos são penalizados.

O PDG Brasil buscou situações em áreas em que o clima não favorece a produção de cafés de qualidade e, além disso, contribui com fermentações indesejadas. Os produtores Felipe Lacerda e Almir Moreira contam como melhoraram e valorizaram seus cafés, com mudanças que foram necessárias, saindo de cafés descritos como avinagrados e azedos, para cafés certificados finalistas de concursos. Siga lendo para saber mais. 

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pós colheita café

Fermentação negativa e os impactos para a saúde

Com a presença da temperatura (luz do sol) em adição aos outros dois fatores, água e açúcar, é criado o ambiente ideal para a fermentação ocorrer. Esse fato ocorre pois, quando se fala dos frutos do cafeeiro, simplesmente estamos nos referindo a um fruto como qualquer outro, com grande quantidade desses compostos. No campo, os frutos são um banquete para os microrganismos selvagens, sujeitos a dominar, colonizar e contaminar.

As contaminações negativas estragam os frutos, depreciando a qualidade do produto final, produzindo os defeitos, grãos ardidos ou grãos pretos dentro da tabela de classificação da COB (Classificação Oficial Brasileira de Café). Além de causar danos econômicos, essa grande quantidade de microrganismos presentes na natureza inclui algumas espécies consideradas patogênicas para a saúde, como o os fungos toxigênicos. 

Alguns desses fungos, como por exemplo o Fusarium e Aspergillus, se tiverem condições ótimas de desenvolvimento, são capazes de produzir micotoxinas que, quando presentes nos grãos, geram enorme preocupação, devido aos problemas que causam. 

Então, além dos danos econômicos para o produtor, uma fermentação negativa pode causar problemas para a saúde humana.

fermentação de café

A pesquisadora Ana Pimenta de Pinho Martins, em seu livro “Microtoxinas Contaminantes do Café” (2003), conta que as aflatoxinas e as ocratoxinas são duas micotoxinas que mais preocupam devido aos sérios problemas que podem gerar, causando danos aos rins e ao fígado, além de possuírem substâncias cancerígenas.

Conhecendo os males que uma fermentação negativa pode acarretar para o produtor e para a saúde do consumidor, fica a pergunta: como pode ser evitado esse processo negativo, ou ainda, como aproveitar essa técnica milenar para otimizar e transformar o vilão no grande aliado?

fermentação de café

Manejos para evitar a fermentação indesejada

Um conceito importante é que o processamento não vai dar qualidade para os grãos, mas o manejo errado pode retirar toda a qualidade. Essa afirmação é baseada na natureza em interação com as plantas e ambiente, expressam o máximo de qualidade possível naquelas condições. O que se observa muito nas fazendas é a perda ou diminuição dessa qualidade após os processos pós-colheita mal conduzidos. 

A fermentação controlada auxilia o produtor a manter a qualidade e em alguns casos traz a complexidade as notas sensoriais que estão ligadas ao sabor da bebida, como podemos observar em trabalhos como o livro “Handbook of Coffee Post-Harvest Technology: A Comprehensive Guide to the Processing, Drying, and Storage of Coffee” (Gin Press, 2014), do pesquisador Flávio Borém. 

fermentação de café

O consultor e produtor Felipe Lacerda, com propriedade em Carangola, no estado de Minas Gerais, afirma que os cafés especiais têm um maior destaque no mercado, e a procura tem aumentado cada vez mais, tanto pelas indústrias quanto pelos consumidores que querem consumir nas residências. 

Felipe afirma que “hoje, os cafés fermentados já se confundem na nomenclatura com cafés especiais, pois o manejo correto de fermentação, com certeza, está em busca de um produto de qualidade”.

processamento café

O produtor nos fala como ele conseguiu reduzir defeitos com os manejos ideias de pós-colheita. “Uma coisa que precisou ser alterada foi a forma como o café é visto. Não é mais um produto, porém é um alimento que estamos produzindo”, explica. Ele afirma ainda que dentro os manejos corretos a se seguir, o mais importante é logo após a colheita, o café já é direcionado para ser lavado.

Dentro dos princípios de manejos ideais, lavar o café realmente teria que ser o mínimo que o produtor deveria fazer, para separar aqueles frutos que já estão comprometidos na porção de boia e assim separar os frutos mais pesados, de melhor qualidade.

processamento café

Fermentações positivas

Dentro das novas tecnologias que surgem, com certeza a fermentação veio para auxiliar o produtor a produzir melhor e ter mais rentabilidade para seu negócio. Os processos fermentativos ainda são pouco conhecidos, devido à grande variabilidade do material biológico. 

Falando de fermentação positiva, devemos dar destaque à Colômbia, que se viu obrigada a desenvolver essa técnica, devido às condições climáticas do país. Na Colômbia chove praticamente o ano todo e, por esse motivo, o café floresce o ano todo. 

pós colheita café

Um cafezal florindo sempre significa que existem frutos maduros, verdes, em enchimento, chumbinho e flores. Então a colheita deve ser feita com o maior cuidado para não haver perdas na produção, sendo assim, colhendo somente os frutos maduros. 

Como falamos, as chuvas são constantes, logo, secar o café em terreiros em pleno sol se torna uma alternativa inviável. A melhor opção é descascar o café para que a secagem ocorra o mais rápido possível. Porém a mucilagem do café ainda está presente nos grãos, e a alternativa mais fácil de remoção é deixar em tanques de água por um tempo que varia de 12 a 36 horas. Assim, a Colômbia precisa fermentar o café para alcançar qualidade.

processamento café

Estudos, como o da pesquisadora Cristhiane Altoé Filete, no artigo “Fermentação Anaeróbica no Café Arábica e seu Impacto no Perfil Sensorial”, publicado na Revista Eletrônica Sala de Aula em Foco (v.6, n.3, 2020), demonstraram que ocorre fermentação nos cafés imersos em água dependendo do tempo. E, no caso do país vizinho, essa fermentação altera positivamente o sabor do café. Devido a esse processo, o perfil sensorial dos cafés colombianos será de grande acidez e notas de frutado. 

Esse foi o início de um processo de maior exploração e destaque dos processos de fermentação no Brasil. Pesquisas e testes com cafés fermentados começaram a ter mais destaque há cerca de 15 anos, não pensando em melhorar a qualidade sensorial, mas sim como uma possibilidade para contornar problemas climáticos ou de regiões com baixa aptidão para qualidade do café. 

pós colheita café

O cafeicultor Almir Moreira, conhecido como Miro, proprietário do Sítio Adelaide, na região das Matas de Minas, contou que antigamente os cafés da propriedade eram por vezes classificados como duros-riados ou riados. 

Miro, que trabalha a sustentabilidade em sua propriedade e tem visão empreendedora, fez uma pequena fermentação em algumas amostras dos cafés. O resultado desse teste foi: quatro amostras classificadas em um concurso de cafés nas posições 9º, 7º, 5º e vice-campeão. 

Sem entender exatamente o que havia mudado, o produtor investiu em conhecimento das técnicas de fermentação e viu além. Entendeu que a propriedade pode ser mais produtiva e lucrativa e dar bons frutos alterando simplesmente a maneira de fazer. 

O cafeicultor diz que foi preciso entender os processos, entender o que eles estavam mudando, as nuances das notas nos cafés e a qualidade. Miro compreendeu que a qualidade não era somente do fruto, mas sim do Sítio Adelaide. Após quatro anos produzindo cafés de bebida fina, o sítio também se tornou uma propriedade certificada e já vem trabalhando com cafeicultura orgânica, agricultura sustentável com plantio de árvores na propriedade, sem perder rentabilidade.

pós colheita café

Alguns fatores como condições climáticas, cultivares, condução e manejo da lavoura, colheita, pós-colheita, influenciam na qualidade final do café. Conhecendo esses fatores, pode-se dizer que todo café passa por um processo de fermentação. Como já mencionado, devemos saber a melhor técnica, para proporcionar os bons resultados desse processo. Fazendo a fermentação de maneira correta é possível ter rotas positivas, melhorando a qualidade sensorial do produto final, a redução no tempo de secagem do café e até mesmo a redução do crescimento de microrganismos indesejáveis.

Créditos: Acervo Murilo Ferraz Tosta. Fotos 1 e 2: exemplo de fermentação inadequada.

PDG Brasil

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