14 de novembro de 2022

“A qualidade está diretamente ligada à logística”: por que mais marcas importantes não passam a torrar o café na origem?

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O conceito de torrar o café na origem é atraente. Ele encurta a cadeia de suprimentos, agrega mais valor na origem e torna a relação entre produtor e consumidor mais justa. Outros benefícios comerciais como custos operacionais mais baixos para instalações, mão de obra, serviços públicos e assim por diante também estão ligados a essa ideia.

Ainda assim, apesar de alguns torrefadores terem passado a operar na origem provando que essa é uma possibilidade concreta, uma pergunta importante permanece: por que outras grandes marcas e players internacionais da indústria não seguiram o exemplo?

Para saber mais sobre os desafios, conversei com quatro stakeholders que atuam em diferentes estágios da cadeia de suprimentos. Continue lendo para saber o que eles me disseram e para obter mais informações sobre por que a torrefação na origem pode ser um desafio para organizações maiores.

Leia nosso primeiro artigo sobre torrefação de café na origem.

Insatalação de uma grande torrefação de café

Recapitulando: torrar café na origem

Nos últimos anos, um número relativamente pequeno, mas crescente, de torrefadores estabeleceu operações na origem com o objetivo de dali exportar para mercados consumidores internacionais.

A ideia por trás disso é simples: torrando o café na origem agrega-se mais valor ao país produtor, resultando em melhores margens de lucro para os cafeicultores. O torrefador geralmente também se beneficia dos custos operacionais mais baixos.

Essa situação pode dar ainda ao produtor um maior controle sobre seu café. Além de receberem pagamentos melhores, os produtores passam a ter a possibilidade de ver como seus esforços no cultivo e processamento se traduzem em determinados sabores na xícara. Isso pode impulsionar a educação e a experimentação. 

Vender para uma marca que torre o café na origem pode trazer ainda mais estabilidade quando o mercado internacional estiver volátil. Além disso, o café torrado na origem oferece aos compradores, torrefadores e cafeterias uma forma de se diferenciar num mercado saturado. Ainda mais considerando que segundo pesquisas os consumidores estão cada vez mais em busca de produtos sustentáveis e que gerem algum tipo de impacto social positivo.

No entanto, apesar desses benefícios, a grande maioria dos torrefadores que operam na origem e enviam internacionalmente são marcas de pequeno a médio porte, em vez de grandes empresas multinacionais. Esse motivo varia naturalmente de organização para organização, mas examinamos alguns a seguir.

pessoa operando um equipamento de torra de cafés

Custos extras: obrigações e impostos referentes à torra de cafés na origem

Como acontece com qualquer setor que conta com uma complexa cadeia de abastecimento internacional, os direitos alfandegários e impostos são um problema para o setor cafeeiro. O simples envio de um produto de um país para outro pode incorrer em uma série de custos administrativos adicionais.

Cristian Czar. diretor executivo da Czar & Co Ltd (Reino Unido), é especialista em logística de commodities e afirma: “Tradicionalmente, a maioria dos produtos agrícolas é exportada in natura para o mercado consumidor, onde são processados. Isso ocorre por vários motivos; às vezes o produto tem que ser preparado de uma certa maneira, e muitas vezes você tem tarifas de importação mais elevadas para a versão processada. ”

Isso acontece com o café. Embora tanto o café verde quanto o processado (solúvel ou torrado) sejam isentos de impostos nos Estados Unidos e no Canadá, importar café torrado em muitos outros mercados consumidores importantes é outra história.

Na União Europeia não há imposto de importação para o café verde, mas todos seus estados membros, exceto Malta e Irlanda, cobram um imposto especial de consumo sobre o café torrado. Como a UE foi responsável por cerca de 34% de todo o consumo mundial de café em 2019, pode-se dizer que esta é uma enorme barreira.

O mesmo se aplica ao Japão e à Rússia. Em ambos os países, o café verde pode ser importado com isenção de impostos. Já para o café torrado, as alíquotas são de 20% para o Japão e de 10% com um mínimo de 0,20 euros por quilos na Russía.

Juntamente com os custos adicionais, o controle de qualidade e as certificações também podem ser um problema. Kevin Morales é um comerciante de commodities na TRC Trading. Segundo ele, importar um produto alimentício manufaturado para a Europa também pode ser complexo em comparação com a importação de produtos alimentícios crus. “Normalmente, produtos alimentícios manufaturados, como café torrado, precisam passar por várias barreiras de controle de qualidade. Isso dificulta a importação de café torrado”, afirma. 

Essas barreiras de controle de qualidade também podem incorrer em taxas adicionais, bem como retardar o processo de exportação, tornando-se uma proposta pouco atraente para torrefadores comerciais maiores.

Mãos segurando uma porção de cafés torrados, sobre uma peneira contendo grãos crus de café.

Frescor é palavra-chave para se torrar café na origem

A logística e o transporte são duas considerações já bastante importantes no modelo tradicional da cadeia de suprimentos do café, em que o café é exportado “cru” da origem e torrado quando chega ao país consumidor. Isso ocorre porque atrasos de longo prazo em portos ou armazéns podem levar à diminuição da qualidade do café, considerando que umidade, calor e oxidação podem afetar a qualidade do café verde.

Com o café torrado, os atrasos logísticos e de remessa são ainda mais preocupantes. Isso porque o café tem uma “vida útil” muito mais curta depois de torrado. O frescor é prioridade para clientes de varejo e atacado em todo o mundo, mas preservar o frescor ao enviar café torrado internacionalmente é muito difícil.

Quando você também considera que há outros problemas e possíveis atrasos ao importar um produto alimentício “manufaturado” (como Kevin mencionou), o envio internacional de café torrado em tempo hábil passa a ser uma tarefa bastante desafiadora.

Cristian acrescenta que isso se tornou mais difícil nos últimos meses. “Particularmente por causa da Covid-19, vimos um gargalo no transporte marítimo e uma escassez de caminhoneiros”, ele me disse. “Portanto, para os torrefadores, a própria logística para transportar até mesmo apenas o café verde da origem para o torrefador é mais difícil do que o normal.”

Isso mostra que a logística já é uma grande preocupação para torrefadores e café verde nos países consumidores. Aqueles que procuram exportar café torrado diretamente para os consumidores ou outras empresas verão esses atrasos logísticos como apenas mais um obstáculo.

Pedro Henrique Dutra, Chefe de Vendas e Marketing da Fazendas Dutra, uma fazenda e torrefação de cafés especiais orgânicos localizada Minas Gerais, conta que a Fazendas Dutra opera uma marca própria, o Café Dutra. Enquanto a Fazendas Dutra exporta café verde, ele afirma que a torrefação Café Dutra “tem como foco o mercado interno”. Isso ocorre porque, segundo ele afirma “os principais desafios da torrefação do café na origem são a qualidade e a logística”.

“O café especial deve ser consumido fresco depois de torrado (após a desgaseificação), o que significa que a qualidade está diretamente ligada à logística”, diz Pedro, que acrescenta: “Quando embarcado em contêineres por frete marítimo, o café tem um tempo médio de desembarque de aproximadamente 30 dias após o embarque, já o frete aéreo tem um prazo médio de entrega de 10 dias. Mas nesse caso o custo logístico é muito alto, o que pode prejudicar os lucros e inviabilizar as vendas internacionais.”

Jacob Elsborg é o CEO da African Coffee Roasters, com sede no Quênia. Enquanto muitos torrefadores na origem reconhecem que as viagens aéreas são a melhor solução para manter o frescor durante a torrefação na origem, a equipe de Jacob depende do transporte marítimo para enviar café torrado do Quênia aos fornecedores de supermercados na Dinamarca.

Jacob observa que o transporte é um problema, mas me diz que existem várias maneiras inovadoras de preservar o frescor do produto por meio da tecnologia. “Nós despachamos pela via marítima, mas injetamos nitrogênio em nossos sacos de café para eliminar todo o oxigênio. Isso nos ajudou na questão da manutenção do frescor.”

Pessoas preparando uma sessão de degustação de cafés

A infraestrutura existente pode tornar a realocação menos interessante

“Exportar um produto perecível como o café torrado pode ser caro e difícil, sem uma infraestrutura pré-existente e um parceiro no exterior”, diz Pedro.

Juntamente com a logística, a qualidade e quaisquer tarifas ou custos adicionais, a infraestrutura é um grande ponto a ser considerado por muitos torrefadores de grande porte. Muitos terão redes existentes e relacionamentos de longo prazo com fornecedores confiáveis. Isso por si só pode tornar a abertura de um novo negócio ou realocação de uma torrefação existente para a origem muito menos atraente.

Jacob diz que, para os African Coffee Roasters, a experiência de estabelecer uma operação de exportação no Rio Athi (nos arredores de Nairóbi) foi um processo muito burocrático. “Antes de os African Coffee Roasters começarem a operar no Quênia, havia muitas negociações entre os governos da África Oriental e da Europa”, diz ele. “Entre as dificuldades financeiras e as preocupações com o transporte marítimo internacional, todas as partes envolvidas tiveram que ser convencidas do benefício de mover a operação e começar no Quênia.”

No entanto, Jacob observa que, no seu caso, a equipe foi capaz de superar essas barreiras e estabelecer uma ligação bem-sucedida entre a origem e seus mercados consumidores-alvo na Dinamarca. “Trabalhamos de forma coesa com supermercados varejistas e vários governos diferentes e economizamos em taxas e impostos ao fornecer um grande volume de café torrado”, diz ele.

Mão operando equipamento de torra de cafés

É viável torrar café na origem?

Torrar o café na origem pode ser uma proposta altamente valiosa e pode trazer benefícios para o torrador, o produtor, a cafeteria e o consumidor quando funciona. No entanto, como acontece com outros modelos não tradicionais de cadeia de suprimentos dentro e fora do café, não é o conceito que está em questão – é o processo de ampliação.

Isso não quer dizer que não haja exemplos em que grandes torrefadoras tenham estabelecido uma presença comercial maior na origem. A marca Juan Valdez da FNC na Colômbia é um exemplo bastante significativo. Mas, embora isso mostre que é certamente viável, também é muito mais fácil quando você começa torrando café perto de onde ele é cultivado, em vez de realocar seu negócio quando você já tem sucesso em um país consumidor.

Para muitos torrefadores de grande porte, geralmente será mais simples manter os sistemas, redes e relacionamentos com fornecedores existentes em funcionamento. Resta ver se isso vai mudar nos próximos anos ou não. Em caso afirmativo e se mais valor puder ser agregado em escala na origem, talvez o setor cafeeiro seja capaz de dar um passo importante em direção à sustentabilidade no longo prazo.

Gostou? Em seguida, leia nosso artigo sobre se a Covid-19 mobilizará ou não os produtores para torrar seu próprio café.

Créditos das fotos: Torrefadores de café africanos

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